Quando se soube da morte do bispo, a minha tia Teresa disse que íamos ao velório na Sé prestar homenagem a D. Francisco Santana, homem de fé a quem as minhas tias e a minha mãe guardavam respeito. Acho que por causa do comunismo, do 25 de Abril e do medo de dividir a casa, o galinheiro e a fazenda do meu avô com mais cinco ou seis famílias. Era o que se dizia que ia acontecer se fossem os comunistas a mandar, mas o senhor bispo não deixou, nós ficámos com as galinhas e a fazenda, mais a dívida de gratidão ao paço episcopal.
D. Francisco Santana finou-se na ignorância da gratidão das minhas tias, o que, para o caso, interessou pouco. A minha tia Teresa, que gostava das coisas da igreja e mandava dizer missas pelas almas, assumiu a função de velar o bispo e levou-me pela mão num sábado à tarde para uma Rua da Carreira cheia de gente, de luto e mulheres chorosas, o que ia ser de todos agora que estava morto e seguia no carro funerário para a Sé. A multidão apertava-se nas ruas, havia escuteiros e polícias a mandar no trânsito, pessoas a querer entrar na catedral, a cidade despedia-se em peso.
E eu estava lá, entre a massa de gente, sem saber ao certo do luto, nem sequer o que era morte, o absoluto que é e o vazio que traz. Não passava de uma miúda de sapatos azuis e meias brancas de renda de algodão a quem a tia tinha tirado da catequese. A dona Gabriela, a catequista, devia andar por ali, piedosa e cheia de fé como os outros que, juntos, tornavam o adro da Sé pequeno e apertado. A multidão espremia-se contra a porta e, por instantes, a minha mão fugiu da minha tia, lembro-me de a ver depois, branca e preocupada, estava bem e inteira?
Não sei se foi do susto, de se ver assim no meio do aperto, a sufocar naquele calor de pessoas, mas nesse sábado não entrámos na Sé, nem eu vi D. Francisco Santana morto. A minha tia Teresa pensou melhor, tínhamos cumprido o dever e mostrado gratidão à luta contra o comunismo, o senhor bispo compreendia. A minha tia voltou a pegar-me pela mão, fomos em passo apressado apanhar o Jamboto, Via Álamos no Baião, havia fila como se fosse dia de semana. Quando descemos os degraus de dois a dois da casa do meu avô era quase noitinha e a minha tia prometeu-me um lanche, tinha um bolo de mel por encetar.
O dia do velório do bispo terminou assim na cozinha, a minha tia a fazer café e a tirar dos confins do armário um bolo de mel que tinha ficado do Natal. "Foi um aperto e tanto, não foi?" A tia podia ficar descansada, não ia falar daquele susto à minha mãe, nem contar a aflição, nem deixar de ir à via-sacra na Quaresma e às missas do parto, nem às procissões para ficar na berma da estrada a ver os santos a abanar nos andores e a ouvir a banda tocar música solene. Eu sabia guardar um segredo e perceber um gesto como aquele de partir um bolo de mel para fazer agrado. A tia Teresa era a madrinha, um coração caloroso, uma mãe quando a minha se foi.
Fonte: DN Madeira
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