quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Recordar o "Até amanhã, Mário!"



"Até amanhã, Mário" fez de João o Mário do filme. É por esse nome que ainda o conhecem. Gostava de ter continuado no cinema, mas foi outro o seu enredo. O amanhã de Mário está ali no Serrado do Mar, onde, sem fitas ou efeitos especiais, se cumpre a vida real: 32 anos, casado, dois filhos, pedreiro de profissão.
Aos 13 anos foi protagonista de 'Até Amanhã, Mário', a história de um miúdo de Câmara de Lobos que queria ser caçador de baleias e que pedia dinheiro aos turistas para ajudar a família.  Era quase a história de João Silva e dos seus 13 anos de menino que andava nas ruas "a pedir aos ingleses" para ajudar os pais. Mas era um filme e isso fez toda a diferença. A magia do cinema é, afinal, esse poder de inventar os dias comuns em imagens.
Hoje, com 32 anos, confessa que gostava de ter continuado "nos filmes", mas o enredo da vida real levou-o por outros caminhos. "Ao menos segui com a vida em frente", diz-nos e os olhos brilham. Ainda os mesmos olhos do miúdo do filme, quase o mesmo sorriso, que  agora se desenha no rosto de Pedro, o filho mais velho.
É Pedro que nos abre a porta do primeiro piso de um bloco de apartamentos no Serrado do Mar e é quase como se fosse possível estar ainda a olhar para o Mário do filme. Mas ali já não há sonhos, nem baleias. Há o mar em frente e os santos nas paredes, há a vida real. Assim tão simples como casar e ter dois filhos. Assim tão simples como chegar a casa do trabalho de pedreiro e falar do sonho de ter sido actor por três meses.
O amanhã de Mário ficará para sempre marcado por esse único filme do qual foi actor principal. As sessões de cinema familiar repetem-se incessantemente e 19 anos depois a memória está intacta.
Sentado na sala, com a Virgem de Fátima em pano de fundo, Mário, ou João Silva,  recorda a história do filme, a sua história. Na plateia da sala de estar estão os dois filhos, Pedro, de 11 anos, e Filipe, de nove. Estão também ali a  mulher, a sogra e a cunhada. Já conhecem o filme e todas as histórias que o acompanham. Mas ouvem atentamente, como da primeira vez, sobre o dia em que João, ou Mário, conheceu a realizadora sueca Solveig Nordlund.
"Lembro-me e muito bem", responde prontamente quando lhe perguntamos se é capaz de recordar esse dia em que foi escolhido para participar no filme, com realização de Solveig Nordlund e interpretações de Canto e Castro, Vítor Norte, Miguel Guilherme e música de Mário Branco.
Na altura, em sua casa, só havia dois rapazes: "um que era meio maluco e outro que era mais esperto, que era a minha situação". Havia também muita falta de dinheiro e essa circunstância obrigava João a pedir "dinheiro aos ingleses".
Foi numa dessas suas deambulações que conheceu "a dona Solveig". Aproximou-se com a lata dos seus 13 anos e pediu-lhe dinheiro para comprar pão. À procura de crianças reais para o filme sobre os conhecidos meninos das caixinhas que deambulava na paradisíaca e turística ilha da Madeira, Solveig não teve dúvidas: estava ali o seu Mário.
Não se sabe se foi o sorriso, o olhar profundo de longas pestanas, ou a graça que todas as crianças transportam,  mas João Silva conquistou, desde logo, a simpatia da realizadora, que lhe perguntou se gostaria de fazer um filme. O miúdo disse que sim e avisou que tinha de falar com os pais. E assim foi.
Na cena seguinte, já tinha em mãos um livro com 100 páginas e em apenas uma noite e um dia conseguiu memorizar todas as suas 'falas'.
Tinha boa memória e, ao que dizem, jeito para o cinema. Pena que foi só um filme, que lhe rendeu o nome de Mário, 200 contos, uma bicicleta, um Skate e uma televisão. Verdadeiros tesouros para um miúdo de 13 anos e uma ajuda financeira preciosa para uma família que vivia em dificuldades.
Mesmo assim, não foi o suficiente para convencer os pais de 'Mário' a deixarem-no ir com os suecos. João teria gostado de ir, queria continuar "no filme", mas não culpa os pais por o terem impedido de seguir aquele que era o seu sonho. Agora que é pai, sabe o difícil que é deixar ir um filho.  "Na altura, o meu sonho era continuar nos filmes. Não acertou, o que posso fazer agora?"
Na verdade, já pouco pode fazer. Ficou-lhe o nome de Mário, pelo qual todos o conhecem e que fez esquecer o João Silva, menino que pedia na rua "aos ingleses".
Só conseguiu ver o filme quatro anos depois da estreia. Teve de ir a Santa Cruz, a casa de um senhor que trabalhava com as máquinas de filmar. Foi ele quem lhe deu a cassete que depois viria a copiar, vezes sem conta, para vários CD's que distribuiu por toda a família.
Chegou a assistir ao filme no cinema D. João, onde reclamou o lugar que achava seu por direito. Ainda lhe quiseram cobrar bilhete, mas ele era o actor principal. "Levei a família toda e ninguém pagou", recorda.
Agora, as sessões de cinema fazem-se em casa, em família, muitas vezes a pedido dos filhos. Pedro, o miúdo mais velho, é a imagem do pai. João jura que olha para o filme e já só vê o filho. Não consegue rever-se homem naquele Mário menino. Talvez porque a vida o afastou dos filmes, da imaginação, dos sonhos e das baleias.
Depois do filme, fez um pouco de tudo para ganhar a vida. Trabalhou na Empresa de Cervejas, na banana com o pai e agora é pedreiro. Um homem tem de seguir em frente, um homem tem de sustentar a família. Sabe que é assim desde os tempos em que ainda não era homem, mas apenas um menino.
É claro que o sonho dos filmes o acompanhou durante muito tempo. Mas sabe que agora é tarde. Falta-lhe a memória de outros tempos e falta, sobretudo, aquele momento certo das oportunidades que apenas surgem uma vez na vida.
E a vez de Mário foi há 19 anos. Aí teria sido o seu momento, aí teria conseguido moldar o destino e ser uma estrela. "Os outros meninos tinham que ter sempre o livro na mão e eu, numa noite e num dia, agarrei num livro com 100 páginas e decorei todas as cenas. A dona Solveig disse que queria um actor e fui eu quem ela escolheu. Eu que só me cheguei a ela e pedir uma moeda para comprar pão."
O filme, recorda, correu-lhe muito bem. Tinha um dom natural. Só numa das cenas houve um pequeno problema. Tinha de entrar num bar, com uma bandeira na mão e gritar: "pai, pai, baleia, baleia". O senhor que fazia de seu pai devia então dar-lhe um tabefe a fingir, mas, no calor da cena, a mão acertou-lhe em cheio e a doer. João, que fazia de Mário, correu porta fora e não queria voltar. Foi preciso chamar a mãe para convencer o actor a regressar ao filme. "Eu era um pouco rabugento, tinha as minhas manias. Mas correu tudo bem."
Correu bem e foi trabalhoso. Três meses de filmagens contínuas, quase todas elas nocturnas. João feito Mário saía de casa às duas da tarde, depois da catequese do sábado e regressava às cinco da manhã.
Guarda sobretudo boas memórias e tem um desejo secreto e constante: "voltar a encontrar a dona Solveig e o Miguel". Sabe que já devem ter uns 60 anos, até já os procurou pela internet, onde encontra apenas referências ao filme, com os nomes dos adultos e dos meninos que o fizeram, com o seu próprio nome: Mário, actor de cinema, João Silva, pedreiro de profissão.
São as saudades que o fazem procurar, são as saudades que o fazem ver o filme repetidas vezes. Saudades da infância, da sua vida de actor, de uma outra Madeira, de uma Câmara de Lobos vila que agora é cidade.
E agora, Mário? Agora diz que não sonha, deixa essa capacidade para os filhos. "Da maneira que vai a vida, o sonho é incapaz de vir à minha cabeça."
E os filhos já não sonham com cinema ou baleias. Sonham antes com futebol, com o Benfica clube do coração, e com o Câmara de Lobos onde aprendem os caminhos e os truques da bola.
O pai sabe que Pedro e Filipe adoram jogar futebol e, juntamente com a mulher, decidiu colocá-los a treinar.
Os cinema é visto em casa na televisão, não há dinheiro para o grande ecrã. "Sou eu e ela a trabalhar e com dois filhos quase que não dá para a vida".
A realidade não é tão fácil como nos filmes. Mas Mário, que é João, não se arrepende de nada. Muito menos de ter casado e de ter os seus dois meninos. Se tivesse ido para o cinema, provavelmente não os teria conhecido, não desta forma. Se calhar, teria outra mulher e outros filhos, mas não estes que o trazem feliz e que são a sua reserva de sonho.
Os filhos que não quer que nunca na vida tenham "de pedir dinheiro aos ingleses" como ele fazia. "Enquanto eu tiver saúde e força para trabalhar, espero que não lhes falte nada. É isto, mais nada." E é mesmo. Até amanhã, Mário!
Fonte: DN Madeira

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