quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre mulheres



Lá dentro, toca uma guitarra. Há um fado antigo a fugir pela janela. A rádio faz-lhe companhia o dia inteiro. A voz do locutor cala-lhe a solidão da casa vazia onde os fantasmas moram abraçados à saudade. Maria [vou chamar assim esta mulher sem nome] conhece bem o consolo desta voz que vai embalando o tempo, como se o tempo, o resto do tempo, fosse coisa de se embalar.
Às vezes, vem à janela. O mundo vive fora daquela sala. Outras mulheres correm para encontrar o tempo que se multiplica e se encaixa e se desencaixa – o de casa, o dos filhos, o do trabalho – o tempo que foge, na exata proporção em que elas tentam [desesperadamente] apanhá-lo.
Talvez Maria [a minha] não tenha conhecido esta loucura. Há algumas vidas atrás, esse mesmo tempo era feito de outra matéria, difícil, também, mas diferente. Também havia a casa e os filhos e as dificuldades e o bordado. Talvez não houvesse tanta corrida. Só isso.
Hoje, a casa está vazia, os filhos foram-se embora e Maria está sozinha, à espera das meninas da assistência que lhe limpam a casa, lhe fazem a comida e lhe amparam o medo de morrer sem ninguém.
À noitinha, o fado cala-se. Maria fecha a janela e reza a outra Maria também:


- Ave Maria, cheia de graça
É esta outra Mulher que lhe faz companhia durante a noite e lhe traz a doçura do beijo de Deus,


- o Senhor é convosco ,
e lhe guarda o sono e a noite e a angústia de não ter ninguém. É então que a


- Santa Maria, Mãe de Deus,
se senta à beira da cama da [minha] Maria e a protege

- agora e na hora da morte.
Amanhã, a guitarra há-de voltar a chorar a saudade. O fado há-de quebrar o vazio. A janela há-de voltar a abrir-se. As mulheres [outras Marias] hão-de voltar a correr. As meninas da assistência vão chegar e alguém há-de olhar para cima e há-de acender um sorriso que iluminará o dia de Maria [a minha]:
- Bom dia


Por: Graça Alves

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