quarta-feira, 3 de março de 2010

Tragédia e farsa na Madeira. Por: Vicente Jorge Silva













A Madeira foi atingida pela maior catástrofe natural de que há memória desde há cerca de um século. Guardo da infância, nos anos 1950, a lembrança muito viva de outro temporal que fustigou duramente o Funchal e a costa sul da ilha, mas cujas proporções não podem ser comparadas às da tragédia do último fim--de-semana. E recordo também outros acontecimentos semelhantes, nomeadamente em 1993, que voltaram a ilustrar a vulnerabilidade humana perante a fúria da Natureza.

Estava no Funchal no sábado passado, mas nem eu nem nenhum dos meus familiares, amigos ou próximos ali residentes fomos atingidos pela tempestade. Isso não me impediu, porém, de partilhar com eles uma tristeza imensa – essa tristeza que só os naturais de um lugar podem viver tão intensamente, quando a morte e a devastação interpelam as nossas próprias raízes e o sentimento de pertença a uma comunidade e a uma paisagem.
Sei que a solidariedade vinda de fora da ilha não se limitou a um ritual retórico – pelo contrário, representou uma resposta categórica à prosápia separatista do jardinismo –, mas também sei que essa solidariedade começa sempre pelos que se encontram ligados à terra onde nasceram ou reconhecem como sua. A nossa dor será necessariamente mais forte, como mais forte deverá ser a nossa exigência em relação ao apuramento das causas e das responsabilidades por aquilo que aconteceu.

Não tenho dúvidas de que, por mais eficazes que tivessem sido as medidas para prevenir e minimizar as consequências de uma tragédia tão avassaladora, elas seriam, em qualquer caso, inevitáveis e brutais. Mas isso não pode servir para esconder ou desculpar aquilo que, por outro lado, se deve à pura imprevidência e irresponsabilidade humanas. A violência destruidora da Natureza é também a resposta à soberba com que se julgou poder violentá-la e constrangê-la, descurando as suas fúrias cíclicas. A Natureza vinga-se sempre – e de forma proporcionalmente terrível – do desprezo e do desrespeito com que é tratada pelos homens.


São múltiplos os relatórios, avisos e intervenções que, ao longo dos tempos, se fizeram – muitos deles com a assinatura de peritos de reputação inquestionável – sobre o caótico desordenamento do território, as urbanizações selvagens, a desflorestação das serras, a ocupação e afunilamento dos leitos das ribeiras, a volumetria absolutamente desproporcionada de edifícios construídos em áreas mais sensíveis (recorrendo-se, para o efeito, à subversão sistemática das regras urbanísticas a troco de escandalosas cumplicidades com um círculo fechado de interesses privados e politicamente ‘amigos’, como acontece na capital da ilha). Os casos dos centros comerciais Dolce Vita ou Anadia, na origem dos estrangulamentos que proporcionaram algumas das destruições e inundações mais catastróficas da baixa da cidade, são um exemplo dessa imperdoável e criminosa irresponsabilidade política.

Basta ver a desfiguração do litoral sul da Madeira ao longo das últimas décadas e, concretamente, da paisagem do Funchal ou outras povoações mais afectadas pelos aluviões de sábado, para se perceber como a ‘monocultura’ da construção civil e dos lóbis político-económicos com ela relacionados se foi impondo, com uma ganância insaciável, às normas mais elementares do equilíbrio urbano e paisagístico. Assim se escreveu na Madeira a crónica de uma tragédia anunciada.



Foi o preço de um ‘modelo de desenvolvimento’, assente no totalitarismo do betão e na agressão bárbara ao equilíbrio natural, com a obsessão pelos túneis, vias rápidas ou marinas que ultrapassaram há muito a utilidade das ligações rodoviárias ou das necessidades turísticas para se transformarem num monstruoso sorvedouro de dinheiro em benefício de uma oligarquia protegida pelo poder político regional.
Agora que a reconstrução é a palavra de ordem, resta saber se os trabalhos de Hércules previstos para concretizá-la irão beneficiar os mesmos que contribuíram, em larga escala, para criar alguns dos factores críticos que proporcionaram o desastre. Seria a ironia da tragédia e a prova de que o crime compensa.

José Sócrates fez o que devia ter feito, ao tomar a iniciativa de deslocar-se prontamente à Madeira e superar os diferendos que o opunham ao presidente do Governo Regional. A tragédia da Madeira não podia deixar de ser vivida como uma tragédia nacional e as quezílias provocadas pela lei do financiamento das Regiões Autónomas tinham-se tornado um episódio quase irrisório perante a dimensão da catástrofe.
Mas esta súbita reconciliação entre dois homens desavindos e em notórias dificuldades políticas (Sócrates com a sua credibilidade profundamente afectada a nível nacional; Jardim já muito vulnerabilizado com os constrangimentos draconianos ao endividamento regional) não deixa, por isso, de soar a falso, acabando por parecer a história de dois náufragos que se agarram um ao outro à espera do salvamento mútuo.

Há assim o risco de a tragédia se converter em encenação hipócrita e farsa política. À custa da tragédia, Jardim pode recolher os milhões de que tanto precisava para continuar a financiar a sua «máquina de guerra do desenvolvimento». Nada indica – antes pelo contrário, se recordarmos o que aconteceu em 1993 – que tenha aprendido seja o que for. Agora, passa a ter as mãos livres para fazer o que quiser e assumir o estatuto de ‘general’ da recuperação da Madeira, sem obrigação de responder perante ninguém. E quem ousa evocar as previsões feitas sobre os riscos de uma calamidade continua a ser tratado de «miserável», «canalha» ou «traidor».
Quanto a Sócrates, conquista um providencial balão de oxigénio para aliviar a pressão dos casos que o asfixiam e tentar recuperar a credibilidade como político humanamente sensível às dores da nação.
Mas a tragédia da Madeira foi demasiado grave para proporcionar uma dupla farsa de hipocrisia, branqueamento e impunidade política.


Fonte:http://sol.sapo.pt/Blogs/vicentejorgesilva/default.aspx

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