domingo, 7 de março de 2010

Não me peçam!











Violante Saramago Matos

A capela das Babosas veio por aí abaixo, em linha recta, arrastando tudo na passagem até à Pena porque atrás dela havia, desde há anos, um aterro ilegal.

Há coisas que, quanto muito, queremos ver uma vez. Foi o que desejei em 1967, quando cheguei a Alenquer integrada numa equipa de estudantes, para ajudar nas limpezas daquela vila que tinha sido, como tantas outras na área de Lisboa, atingida por uma catástrofe semelhante à que entrou pela Madeira adentro. Aí vi corpos, constatei o desespero de quem perde familiares e amigos e vê a vida desaparecer debaixo da água, mas que não hesita na solidariedade ao próximo; percebi que limpar lama é tarefa inglória - por muito que se limpe há sempre mais; aí senti, até hoje, o cheiro próprio destas situações. Na parte baixa de Alenquer a água chegou aos 3 metros de altura e a vila perdeu cerca de 50 pessoas.

No regime salazarista a censura era lei, mas a tragédia foi de tal dimensão que a sua denúncia corria mais depressa que os lápis dos censores e ficou a saber-se que tudo se tinha tornado ainda mais grave devido aos imensos erros na ocupação do solo, na localização de estradas e construções, no estreitamento do rio, ribeiros e regatos que drenam a lezíria ribatejana. E que tudo já vinha sendo avisado há muito tempo.

Lá como cá, só que agora é diferente. Não há lápis, mas há o insulto aos que alertam para que não aconteça, a todos os que durante tantos anos, e tantas vezes, chamaram a atenção para as bombas-relógio que nasciam em todo o lado, aos 'canalhas'! ou, em versão mais astrológica, aos 'zandingas'! A 20 de Fevereiro, ocorreu um fenómeno natural - dramático e raro, mas natural. A nossa obrigação é não facilitar o caminho à tragédia, e muito menos potenciá-la com promessas de adro de igreja ou decisões de cabeça quente. Porque Sim, porque Eu mando, porque Eu quero!

Foi o Afonso Costa que andou a brincar com a Ribeira Brava e a de S. João, como se fossem berlindes jogados de um lado para o outro? Não. São obras de hoje. O trabalho deixado por Oudinot é muito bom. Mas não se evoque o nome dele para justificar as asneiras que se fizeram depois, na 'Madeira nova', da foz para a nascente, com a canalização, estreitamento ou mesmo bloqueio das linhas de água.

A falta de ordenamento das Zonas Altas do Funchal é culpa do Salazar? Não. E foi lá em cima que, no Funchal, se verificaram as maiores desgraças. A baixa tremeu, ficou alagada, as casas inundaram, o comércio tem prejuízos imensos. Mas foi acima da cota 200 que as pessoas morreram. Foi lá, onde o caos urbanístico adubou a desgraça. É lá que a intervenção é urgente, para não termos outras Ribeiras do Trapiche nem outros Laranjais! A Câmara nunca quis avançar para um Plano Integrado de Habitação, mas é lá que é preciso gastar dinheiro para realojar, para ordenar, para dar consistência. Do que precisamos é de solo bem urbanizado e não de farónicas cotas 500 que, mesmo que se chamem 'Via Miguel Albuquerque', não ajudam absolutamente nada aquelas zonas tão problemáticas, em termos urbanísticos.

Porque é que o Governo recusa a reavaliação da área do Parque Natural, para saber se se justifica que ocupe 2/3 do território, ou se pode ser libertada área para urbanizar, criando habitação em adequadas condições de qualidade e segurança? A estrada da Meia Légua ou os desvios das ribeiras para permitir construções, são da autoria do D. Carlos? Que eu saiba não.

Ao contrário do que se propagandeia, o que aconteceu é o espelho da derrocada da Madeira 'nova' e o que rebentou foram obras de uma terra onde tudo se faz de qualquer maneira, sem atender aos técnicos, sem ensaiar modelos, sem medir consequências e até sem respeito - ainda não se tinham levantado os corpos dos que morreram, já se afirmava que, olhando para trás, tudo se faria igual.

É sempre tudo às cegas, e não há, sequer, a humildade de parar e perguntar 'Teremos feito tudo o que podíamos para evitar tamanha catástrofe?! Não teremos feito alguma coisa errado?' Se ainda houver um pingo de consciência, ela estará lá, a fazer doer, quando grita que a capela das Babosas veio por aí abaixo, em linha recta, arrastando tudo na passagem até à Pena porque atrás dela havia, desde há anos, um aterro ilegal, a que alguém juntou um contentor.

E a culpa não é do D. Carlos! Nem é dos avisos, cem vezes repetidos, de que é preciso acabar com despejos irresponsáveis de terras e entulhos e criar aterros legais, bem feitos, sólidos, controlados. Por tudo isto, não me peçam para ser politicamente correcta e não repetir hoje o que venho dizendo há tanto tempo. Não é possível que tudo continue como está. Não é possível refazer exactamente o que foi destruído. Não é possível continuar a gastar rios de dinheiro sem controlo nem acompanhamento em obras para ganhar eleições, numa Madeira 'nova' à medida do jardinismo.

Não me peçam para não insistir que a sociedade tem que impor um debate sério, mas mesmo muito sério, sobre todas estas matérias. Começar pelos Socorridos será, sem dúvida, começar bem!

Fonte:http://www.dnoticias.pt/Default.aspx?file_id=dn04010601060310

Sem comentários: