sábado, 15 de novembro de 2008

Portugal, crónica anedótica









Consta que o Banco de Portugal exerce o papel de supervisor do sistema bancário. Desenganem-se: é apenas uma anedota. A longa audição de Vítor Constâncio no Parlamento serviu para confirmar o que já se sabia: só quando a casa vem abaixo é que o imperturbável e cândido supervisor descobre as fundações ruinosas que estavam à vista de toda a gente (mas não dele, claro). Ou seja, a supervisão não passa de um formalismo inútil, sem capacidade de previsão, prevenção e actuação efectivas, apesar dos indícios, avisos e anomalias que se foram evidenciando ao longo do tempo, primeiro no BCP e depois no BPN (que, aliás, era um folhetim antigo). No entanto, quando se ouve Vítor Constâncio acredita-se que os anjos existem mesmo e ficamos enlevados pela insustentável leveza do ser.

Estes dias foram ricos na ilustração da crónica anedótica portuguesa e na aparição dos anjos. Outro exemplo: Fátima Felgueiras foi formalmente condenada, porém com tal brandura e inconsequência que ela pôde considerar--se não apenas simbolicamente absolvida mas até politicamente recompensada pelos arbítrios cometidos durante a sua administração municipal. Acontece que Felgueiras tem razão: os formalismos jurídicos lavaram-na, na prática, das culpas e dos custos políticos do exercício abusivo do poder. Surpreendidos? Mas haverá ainda lugar para surpresas em Portugal?

Não faltou quem ficasse espantado que, na Madeira, um deputado do PND pudesse ser impedido, por seguranças privados, de entrar no Parlamento regional, depois de Alberto João Jardim ordenar aos seus sequazes políticos a interdição do deputado e a própria suspensão das actividades parlamentares. Tudo aconteceu porque o deputado em causa exibira no hemiciclo uma bandeira nazi para protestar contra as novas restrições do uso da palavra, impostas pela maioria jardinista aos deputados da oposição.
Não obstante a evolução posterior – e precária – do caso, ficaram entretanto por esclarecer não apenas o comportamento complacente da PSP face ao abuso de poder dos seguranças privados à entrada do Parlamento (o MAI demitiu-se de apurar responsabilidades), mas, sobretudo, a apatia e tibieza do Presidente da República ou do PSD nacional, um e outro incapazes de tirar as conclusões que se impõem sobre os sistemáticos desmandos antidemocráticos e anticonstitucionais praticados impunemente numa parte do território português.
Compare-se o rigor formalista de Cavaco Silva a propósito do estatuto dos Açores e o seu comprometido silêncio acerca do défice democrático na Madeira. No fundo, o gesto do deputado do PND, por muito anedótico e disparatado que tenha sido, é um mero reflexo do carácter grotesco da vida política madeirense. E a sua oportunidade ficou demonstrada com o eco que suscitou a nível nacional, quando para desmistificar o sufocante e caricato autoritarismo jardinista quase só restam golpes burlescos como aquele que o deputado do PND protagonizou.

Infelizmente, o culto do autoritarismo acéfalo não se limita à Madeira. Que resta aos professores, perante o autismo insistente do Ministério da Educação, senão repetirem, com adesão cada vez mais esmagadora, o seu protesto contra um método de avaliação ineficaz, arbitrário e até kafkiano – mas que se tornou, para o Governo Sócrates, um símbolo de ‘inflexibilidade’ (leia-se: de virilidade política complexada). O princípio justo e necessário da avaliação do mérito profissional fica assim reduzido a uma anedota autoritária que o esvazia de legitimidade política e adesão pública.
Mas enquanto se pretende impor aos professores uma avaliação que ofende a sua dignidade e se opta pela demagogia do facilitismo nos resultados escolares, o Governo demonstra uma sintomática condescendência com os conflitos de interesses entre as esferas pública e privada. Quanto rigor para os professores e quantos paninhos quentes para os responsáveis do escândalo BPN... E que dizer do negócio dos contentores em Alcântara, atentado paisagístico e ambiental que retoma um outro – felizmente inviabilizado – que a APL tentou perpetrar há cerca de duas décadas na frente ribeirinha? Ou que dizer ainda de mais um caso revelado esta semana, envolvendo em relações espúrias o actual ministro da Economia e o responsável pela Autoridade da Concorrência (cujo papel na regulação dos preços dos combustíveis foi de uma inoperância clamorosa)?
Quando a promiscuidade e a opacidade das conexões entre o mundo político e inconfessáveis interesses privados chegam a tal ponto, a crónica anedótica corre o risco de mudar de género e transformar-se em crónica policial. Ou, se preferirem, resta-nos acreditar nos anjos.

Por Vicente Jorge Silva

Com a devida vénia ao Sol


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