"Até parece que não somos gente do Funchal"
Em Dia de festa, habitantes das zonas altas pedem atenção, ajuda e soluções.
A mão confiante abre a porta da casa onde viveu 38 anos sem água, nem luz, até há bem pouco tempo. "Isto agora está melhor", confessa Maria Camacho. Do lado de lá, três pequenos espaços constituem o lar de cinco pessoas, no Caminho da Ribeira Grande. "Vivo à rasca", conta, mostrando um frigorífico despido de alimentos. A poucos quilómetros do centro do Funchal, o DIÁRIO testemunhou cinco casos de famílias que resistem às contrariedades do tempo, da vida, da sociedade. Maria é um dos exemplos.
No Caminho da Ribeira Grande, para além da falta de condições na habitação - feita com madeira, zinco e pedra -, os autocarros 'resistem' em não subir a difícil estrada que esconde, até ao final, dezenas de casas. "É uma vida difícil", garante Maria, que sobrevive à custa de algum dinheiro que o marido traz para casa, fruto de alguns trabalhos que consegue. Também desempregada, conta que já lhe falaram que devia pedir ajuda à Cruz Vermelha Portuguesa. "Mas tenho vergonha, menina", confessa, com os olhos forrados de tristeza.
Nos quartos amontoam-se coisas, o espaço é exíguo. "A casinha é assim, mas está fresquinha", reforça, abrindo caminho no espaço estreito e garantindo que já viveu pior.
Mesmo ao lado, outra família em situação quase idêntica. Fernanda Freitas vive com mais sete filhos e o companheiro à conta do Rendimento Social de Inserção. A conversa é interrompida por instantes devido ao barulho ensurdecedor de dois camiões que sobem, a bom ritmo, o Caminho da Ribeira Grande. "Tem ocasiões em que, às cinco ou seis horas da manhã, os camiões passam para cima e para baixo", aponta. Há tempos cortaram-lhe a água, por falta de pagamento. "Vamos vivendo com o que se consegue", continua, explicando que não há dinheiro nem para pagar uma creche. Falta dinheiro para quase tudo.
Fernanda Freitas garante que já está inscrita na Investimentos Habitacionais da Madeira (IHM) há algum tempo, mas a resposta que recebe é sempre a mesma. "Dizem que, para mim, não há casa", afirma. "As zonas altas são sempre esquecidas, até parece que não somos gente do Funchal", reforça, enquanto aprecia, na pequena entrada da porta de casa, a passagem de mais um camião.
A ausência de transportes públicos na zona é algo que Fernanda reclama. No cimo da Rua do Campo do Andorinha, o DIÁRIO encontrou uma criança que desabafou ter de percorrer um beco, até ao Lombo dos Aguiares, para chegar à escola. No local, o carteiro da zona faz a distribuição a pé. "Aqui não dá para levar a mota", sublinhou, em andamento.
Esperanças na Cota 500
O carro 'arranha' a primeira velocidade ao percorrer, estrada acima, o Caminho da Cova, em São Roque. Após a subida íngreme, já muito afastada da estrada principal e quase a 'bater no céu', no final da estrada e na última casa, Maria Gouveia, de 86 anos, borda para ganhar algum dinheiro para as despesas da casa ou, se calhar, para o próximo táxi que necessitar. "Aqui já vêm táxis e ambulâncias, mas um autocarro ajudava", explica, retirando os óculos e a atenção do bordado.
A estrada é quase a pique e a casa de Maria Gouveia é praticamente a última. O caminho termina poucos metros acima. No alto dos seus 86 anos já feitos, confessa que gostava de ver o lugar onde mora suportado por transportes públicos. Assim, sempre poupava os 15 euros de viagem, ida e volta, quando vai 'à cidade'. "E este é o táxi mais barato", sublinha, frisando que a esperança está depositada na construção da Cota 500. "Sempre que vêm aqui tirar medidas, medem dali para cima", afirma, apontando para uns terrenos em cima. "Enquanto eu podia, saía do autocarro lá em baixo e vinha a pé, mas agora não posso", acrescenta, confessando, no entanto, que gosta da zona onde vive. "Aqui sinto-me bem, isto antes era uma vereda e agora até já vem carros", recorda.
No Caminho da Ribeira de Santana, também em São Roque, o arruamento afunila-se à medida que se vai subindo. Casas não faltam, umas melhores que outras. A custo, Maria Sousa chega ao beco que dá acesso à casa onde mora há mais de 30 anos, depois de ter trocado a terra natal, o Estreito de Câmara de Lobos, por São Roque.
A ausência de transportes públicos faz com que tenha de andar bastante a pé. "Eu ando um bocadinho e já fico cansada", confessa, com visível enfado. A falta de iluminação no local e a pobreza que a rodeia são os problemas que foca 'estarem a mais'. De resto, tudo se suporta. "Até hoje, nunca aconteceu nada nesta zona, mas de vez em quando passa por aqui acima uns carros loucos e até grito de medo", desabafa.
Na porta ao lado, e com olhar atento, José (nome fictício) garante não ter motivos para festejar. "Parece-me que já houve seis dias da cidade este ano", graceja, apontando que as entidades deviam preocupar-se com o preço dos bens essenciais, cada vez mais caros. A casa onde José habita com a esposa é feita de pedra, zinco e madeira, com condições de habitabilidade forçadas. Dezenas de pedras seguram as folhas de zinco que compõem o telhado, não vá o vento trair. "Isto está tudo malfeito, mas foi construído pela minha mão e assim vamos vivendo mesmo reles", sublinha.
O tom de voz denuncia desagrado, tristeza, marca de uma vida nada fácil. "Eu era ajudante de pedreiro, mas agora vivo da reforma", conta. Com 350 euros tem de gerir despesas da casa, de saúde e alimentação. "Não temos dinheiro, o que vamos fazer?", questiona.
Para além do peso da idade, quando sai de casa tem de andar a pé até apanhar um autocarro. "Há vezes em que desço e depois subo com chuva", recorda. Com as comemorações dos 500 anos do Funchal, José não quer nada. "Deviam preocupar-se com outras coisas", remata.
5 Problemas identificados nas zonas altas
Pobreza
As reformas são míseras e as famílias grandes. Os salários dos agregados familiares são, em média, baixos, e insuficientes para fazer face às despesas.
Acessibilidades
Muitas das ruas, íngremes e estreitas, terminam em becos e travessas. O táxi é alternativa face à ausência de transportes públicos e de viatura particular.
Habitação
Há casas, como a de Maria Camacho, na Ribeira Grande, que só 'recebeu' água e luz este ano. Foram 38 anos de dificuldades que ainda persistem.
Desemprego
Aflige sobretudo os casais com vários filhos. O subsídio de desemprego e o Rendimento Social de Inserção vão ajudando a sobreviver.
Salubridade
Há ainda muitas casas e barracas sem acesso à rede pública de saneamento básico. O problema da salubridade agrava-se com o surgimento das pragas.
Por: Zélia Castro
Fonte: Diário de Noticias, 21 de Agosto de 2008
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